sábado, 16 de agosto de 2008

Uma barriga à meia-noite

Para Raúl Dellatorre, do jornal argentino Página/12, a má gestão de empresas públicas foi argumento convincente, durante os anos 90, para justificar as privatizações. “Ainda que essa má gestão resultasse de anos de gestões que buscavam seu esvaziamento ou deliberada ineficiência em cumprimento de seus objetivos”. Objetivos escusos.

Para ele, no caso da Aerolíneas Argentinas, foi preciso mentir, falsear os dados e a realidade de uma empresa que ganhava em eficiência, prestígio e mesmo em resultados de suas competidoras privadas.

Fez-se um grande esforço para esconder essa realidade, prometendo até que, com o capital privado, obter-se-ia mais conforto, maior freqüência, tarifas acessíveis, acelerando a entrada da empresa para o Primeiro Mundo. “A história real, que veio com a privatização, é mais conhecida”, diz Raúl. Faz lembrar a história da VASP.

Mais um “caos aéreo”, há poucas semanas, refletiu essa história real. O resultado do número de passagens vendidas em excesso. Que não é diferente da diminuição do espaço entre as poltronas, para aumentar, em ambos os casos, o lucro. Ou a “eficiência” da empresa privatizada.

Nesse episódio, não faltou um Boris Kasoy a querer atribuir o fato à conta da re-estatização, ainda não concretizada, da empresa. Uma barriga que nem a Rede Globo, sempre de má-vontade com os Kirchner, quis comprar.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Revisitando arquivos




Em 17/02/2007, o blog do Emir, trouxe excelente reflexão relativa à ideologia da nossa imprensa. Para Emir Sader, “a mídia latino-americana é cada vez mais igual, de um país a outro: age como um bloco político e ideológico de direita, cada vez mais homogêneo. Faz oposição cerrada, em bloco, em países como o Brasil, a Argentina, a Bolívia, a Venezuela, o Equador”. Diferentemente do que ocorre, por exemplo, na Espanha, onde “quem quiser ler um jornal de esquerda compra o El País, quem quiser ler um jornal de direita compra o ABC”.

Para fugirmos da mesmice, Emir recomenda fontes alternativas de informação e discussão, como Carta Capital, Brasil de Fato, Caros Amigos, Fórum (*). E a leitura diária do que considera “o melhor jornal do continente”, La Jornada, do México, de acesso gratuito, especialmente por sua cobertura internacional e da América Latina, em particular. Ou do diário argentino Página 12, também de acesso gratuito. Quanto ao espanhol El Pais, diz Emir que, embora seja particularmente hostil aos governos venezuelano e cubano, é bastante útil como fonte.

Na internet há muitas páginas alternativas e Emir recomenda a leitura de Carta Maior [3] e páginas de jornalistas como Paulo Henrique Amorim [4], Luis Nassif , Mino Carta, entre outros. Na mídia internacional, é indispensável a leitura do Le Monde Diplomatique e da revista estadunidense The Nation. Como revistas teóricas, Margem Esquerda, Crítica Marxista e New Left Review, esta também tem edição em castelhano. Vale conferir.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Habeas corpus


segunda-feira, 7 de julho de 2008

Bertold Brecht


ALGUMAS PERGUNTAS A UM HOMEM BOM


Bom, mas para quê?

Sim, não és venal, mas o raio

Que sobre a casa cai também

Não é venal.

Nunca renegas o que disseste.

Mas que disseste?

És de boa fé, dás a tua opinião.

Que opinião?


Tens coragem.

Contra quem?

És cheio de sabedoria.

Para quem?

Não olhas aos teus interesses.

Aos de quem olhas?

És um bom amigo.

Sê-lo-ás do bom povo?


Escuta, pois: nós sabemos

Que és nosso inimigo. Por isso vamos

Encostar-te ao paredão. Mas em consideração

Dos teus méritos e das tuas boas qualidades

Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com

Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com

Uma boa pá debaixo da terra boa.


(Bertold Brecht)

(postagem: Maeve Jinkings)

sábado, 5 de julho de 2008

Os paradoxos colombianos


Os paradoxos colombianos

Relevante questionamento foi produzido pela jornalista Eliane Cantanhede, na Folha de S. Paulo desta quinta-feira. Segundo ela, ninguém entendeu muito bem a ida de John McCain para a Colômbia em plena campanha eleitoral. E justamente no dia em que Ingrid Betancourt foi libertada de um cativeiro de mais de seis anos, junto com três mercenários dos EUA. Acrescentaríamos: em véspera do Quatro de Julho, maior feriado cívico estadunidense, e no dia em que Washington resolveu resgatar a Quarta Frota, a famosa esquadra que vai “proteger” o litoral do nosso continente. Contra eles mesmos?

Para Eliane, mais coincidências: McCain é o candidato do presidente Bush e, atrás do democrata Barack Obama nas pesquisas eleitorais, precisa de "mágicas". Mais: a bem-vinda libertação de Ingrid Betancourt fica na conta de Uribe, com um enorme saldo político e eleitoral num momento chave da Colômbia. Para reforçar Eliane: Uribe, embora muito cotado em popularidade, passa por grave crise institucional. Dezenas de parlamentares de sua base de apoio, incluindo um primo senador, estão presos por atividades paramilitares, ligadas ao tráfico pesado de drogas e ao assassinato de mais de mil opositores ao governo, entre lideranças sindicais e populares.

No Brasil, a julgar pelos recentes entusiasmos da mídia “global” com o presidente Uribe, já se cogita um apoio a um terceiro mandato. Desde que não seja para Chávez nem para Lula, claro. Enfim, mais razões à Eliane: “O resto da história ainda precisa ser muito bem contado, na base do quem, como, onde e, principalmente, por que. E, afinal, que raios McCain estava realmente fazendo na Colômbia?”

Leia o texto completo de Eliane Cantanhede em Luis Nassif Online.

O mistério sagrado do capital

O mistério sagrado do capital

O escritor inglês, Julian Gough, lembra Max Weber para dizer que “os primeiros protestantes viam o sucesso econômico como um sinal de Deus de que alguém era celestialmente eleito. Foi um pequeno passo passar disso a buscar o sucesso para assegurar a salvação”. Gough também lembra Walter Benjamin: “O capitalismo pegou discretamente a Reforma Protestante e substituiu a religião por si mesmo: ele se tornou uma religião, a religião ocidental”.

Segundo Gough, tanto as altas finanças modernas quanto o cristianismo moderno usam a linguagem e instrumentos da ciência para fins que são religiosos, não científicos. “Ambos atendem uma necessidade, um anseio que as antigas formas de religião e capitalismo não mais atendem. A necessidade de um poder misterioso maior do que nós, no qual possamos acreditar. Ele precisa ser poderoso - mas também deve ser misterioso. E o mistério vem desaparecendo do mundo cada vez mais rápido, desde Galileu”.

Para o autor de Juno and June, “nós sabemos do que são feitas as estrelas e podemos computar seu curso pelos céus pelos próximos 10 mil anos. Nós podemos explicar as tempestades e inundações que antes eram evidência da ira de Deus. Mas à medida que o avanço da ciência removeu o mistério divino de grande parte da vida, o avanço do capitalismo de livre mercado o devolveu. Apenas a economia moderna pode atualmente fornecer forças que não entendemos. E precisamos disso em nossas vidas”.

Leia o texto completo de Gough postado pelo jornalista Olímpio Cruz Neto

Queria a Lua

Há certa complementaridade da matéria de Julien Gough, em Prospect de julho, com o excelente texto do jornalista Clóvis Rossi da Folha de S. Paulo desta quinta-feira, 03/07. Provavelmente convalescendo de recente e fastidiosa demência política que recém lhe acometeu, Rossi lembra Pietro Ingrao, comunista italiano de 93 anos: "Na minha terra, nas grandes noites estreladas de verão e primavera, dá a impressão de que se pode pegar a Lua, quando sai entre as montanhas. Quando pequeno, queria pegá-la”.

Segundo Rossi, o menino Ingrao pedia ao pai, como prêmio por fazer pipi antes de dormir, olhando pela janela na direção do vale e das montanhas e vendo a Lua brilhando: “Quero a Lua". Para Ingrao, a Lua simbolizava algo muito bonito que não se consegue agarrar. Ingrao cresceu e escolheu uma nova Lua para perseguir: o comunismo como "símbolo de algo muito bonito". Para Rossi, pode-se até não concordar com a escolha que fez o comunista, “mas não dá para negar que o mundo moderno tornou-se esquivo demais à busca da Lua, qualquer Lua”.

Rossi supõe, com razão, que há muita gente que tem lá suas "luas" individuais ou coletivas. E cita a seleção de futebol da Espanha que acaba de ganhar a Eurocopa, após 44 anos, assumindo um slogan mercadológico de “nada é impossível”. O atento jornalista se refere ao mundo político, onde já não se vê ninguém querendo agarrar a Lua. E completa: “Na melhor das hipóteses, administram o possível, nada mais. Talvez, se quisessem a Lua, iriam algo além do possível. Talvez”.

sábado, 14 de junho de 2008

Corra, Lula, Corra

O filme alemão, de 1998, Corra, Lola, Corra, (Lola Rennt), dirigido pelo competente Tom Tykwer e protagonizado pela belíssima Franka Potente, encerra uma lição de vida de múltiplas facetas filosóficas, sendo, ao mesmo tempo, denso em ação e suspense. Quem não o viu, perdeu a oportunidade de curti-lo na telona. Resta o consolo de vê-lo no sofá de casa, em tela miúda, correndo o risco de ampliar aquele pneu que ronda a cintura. Leia mais sobre o filme. [1] e [2]

É como a corrida que se estabeleceu de uns tempos pra cá para fazer o Brasil se encontrar consigo mesmo. Nessa corrida, diferentes tropeços, a la Lola, iniciam com uma colossal dívida social acumulada em centenas de anos de hegemonia econômica exercida por uma oligarquia perversa, concentradora de riquezas. São gigantescas as desigualdades entre o topo e a base da pirâmide social. Nas últimas décadas, cada vez mais se “gastou” menos com as políticas públicas que possam imprimir algum padrão de dignidade ou que busque resgatar o poder de vida de milhões.

Os ventos neoliberais que o grande capital transnacional concebeu na década de 90, docilmente acolhidos por Carlos Menem, Alberto Fujimori e Fernando Henrique na América Latina, trouxeram a cultura de irresponsáveis privatizações e novos conceitos de liberdade de mercado que viriam a garantir o livre caminho à sanha concentradora das riquezas. Investir em políticas de interesse social passou a ser visto como “gastos do governo”. Até uma contribuição sobre movimentação financeira, como a CPMF, para “gastar” na saúde pública foi surrupiada para finalidades duvidosas.

Aliás, um efeito colateral do “imposto do cheque” revelava numerosas fortunas em mãos de pessoas que não costumavam pagar Imposto de Renda. Daí, a alegria dos defensores do “livre mercado”, na verdade a máfia da sonegação, ao sepultar um instrumento tanto fiscalizador quanto solidário e democrático. Com a CPMF, o brasileiro médio pagava, anualmente, menos que o preço de uma pizza para melhorar o padrão de vida dos menos favorecidos. Com um quarto desse valor, nova proposta está em discussão no Congresso Nacional. E tem o endereço certo para a Saúde, que lhe confere alto valor social.
[3]

Por seu turno, os “gastos do governo”, do atual governo, têm ido às raias do “nunca na história deste país”. Nenhuma alíquota a mais de tributo foi criada e ainda foram desoneradas de impostos produtos de cesta básica de alimentos, material escolar e de construção, além de produtos de informática. Já está consagrado mundialmente o enorme benefício social do programa Bolsa Família e o financiamento popular que tem mudado o perfil aquisitivo da população, com algumas dezenas de milhões de brasileiros migrando para faixas de consumo que lhes permite maior dignidade.

Mas, a corrida frenética de Lola em busca dos cem mil marcos que poderão salvar a vida do seu amado, é repetida uma, duas, três vezes. Entre nós, pode ser três mil vezes.Não basta o insuspeito Le Monde indicar aos Estados Unidos o remédio brasileiro que lhes poderá salvar da bancarrota. Não basta exibirmos com orgulho os índices progressivos e sustentáveis da condição da nossa produção a apontar melhor qualidade de vida aos brasileiros. Como nos tropeços de Lola, esbarramos sempre nos profetas do apocalipse de plantão, a prever dias piores, “se o governo não parar de gastar”.
[4] e [5]

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Cumplicidade contra avida

“Nos últimos 40 anos, a Aracuz construiu um império no Espírito Santo. Nesse período desmatou florestas, ocupou áreas indígenas, represou rios e chegou a inverter o curso de um outro para abastecer uma de suas fábricas. Tudo com a conivência do poder público. A empresa sempre manteve fortes ligações com políticos. Somente nas três últimas eleições, doou R$ 6,5 milhões a candidatos do estado”. Este texto subscreve uma grande foto colorida de um flagrante de devastação florestal, na capa do Correio Braziliense de 1/06/2008. Encerra o texto uma chamada para a reportagem que ocupa as três páginas seguintes, com o sugestivo título de “Feridas abertas na floresta”. [1]

O CB abre a reportagem com o subtítulo “Empresa de celulose represa e inverte curso de rios, seca nascentes e destrói mata nativa para plantar eucalipto no Espírito Santo e na Bahia, com a conivência do poder público”. A matéria de Lúcio Vaz, enviada de Aracruz (ES), revela as entranhas da construção do império empresarial que fez da Aracruz Celulose a maior produtora mundial de celulose de eucalipto. Vaz mostra a ligação da empresa, desde os anos 60, com o mundo político, a quem doou cerca de R$ 6,5 milhões só nas últimas eleições. E exibe o efeito devastador da Aracruz sobre o que ali resta da Mata Atlântica, sobre os rios e sobre as terras de índios e quilombolas.

O trabalho de Vaz amplia o que já se sabe da ação da Aracruz e outras no Rio Grande do Sul. Ali, a expansão das plantações de eucalipto e a implantação de novas fábricas de celulose vêm produzindo extensas áreas desertificadas. Hoje, a empresa mantém 203 mil hectares de plantio no Espírito Santo e na Bahia, onde se apropria de recursos hídricos, causando fortes danos ambientais. Estudo da Associação de Geógrafos do Espírito Santo revela que a quantidade de água consumida por dia pela Aracruz da Barra do Riacho, no processamento e branqueamento da celulose, ronda os 250 mil metros cúbicos, o que equivale ao consumo diário de uma cidade de 2,5 milhões de habitantes.

E o que se vê? Destruição de matas nativas, assoreamento dos cursos d’água, contaminação das águas por produtos químicos e por despejos sem tratamento (pelos povoamentos desordenados), represamento de águas, obstrução dos leitos por estradas de transporte de eucalipto, eliminação da vida. E nada disso é novo, desde a denúncia inicial do biólogo Augusto Ruschi em 1971, renovada anos a fio, por entidades de defesa do meio ambiente, publicações especializadas e diversos movimentos sociais. Desgraçadamente, não há nenhuma repercussão institucional ou midiática de peso. As barreiras, parece, estão nos financiamentos de campanha e nas verbas publicitárias.

domingo, 1 de junho de 2008

A segurança do script

Mirian Leitão em três momentos: os dois primeiros, com script; o terceiro, um desastre. Interferência psico-ideológica? (clique em pausa e aguarde alguns segundos para carregar)

domingo, 25 de maio de 2008

Mercadores da morte

São 17% os deputados ligados ao "lobby da cerveja", revela pesquisa da Folha de S. Paulo divulgada neste sábado. Realizada a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral, a pesquisa mostra que quase um em cada cinco deputados – são 87 deputados federais – tem concessão de rádio e televisão e/ou receberam em 2006, da indústria de bebidas e de comunicação, mais de 2 milhões de reais em doações de campanha. Na semana passada, o projeto que restringe a propaganda de bebidas com baixo teor alcoólico, inclusive a cerveja, entre 6 e 21 horas em rádio e televisão, foi retirado da pauta de votações. Como são poderosos os mercadores da morte. [1]

Há mais de um mês, finórios membros da indústria de cerveja e de emissoras de rádio e TV, vão ao Congresso quase diariamente para fazer lobby contra o projeto de regulamentação. Ou seja, para manter a terra de ninguém em que se tornou a questão da propaganda de bebidas alcoólicas, que favorece o lucro de quem fabrica e de quem divulga. E, confirma-se agora, engorda o caixa de deputados. Este lucro com a cerveja deixa sempre capenga qualquer possibilidade da mídia de discutir com seriedade a principal causa de acidentes e mortes no trânsito. Como enfrentar Brahma, Skol, Kaiser, Antártica, Globo, Record, SBT, Band e o bando dos deputados?

Trava-se, pois, uma verdadeira batalha entre o Ministério da Saúde, de um lado, e o Congresso Nacional, a indústria de bebidas e a “indústria” da mídia, do outro. Nessa, conforme revela surpreendente matéria de capa do Jornal do Brasil desta segunda-feira: “o Brasil gasta mais de R$ 33 bilhões anuais com problemas decorrentes do álcool. Somam-se aí as despesas com acidentes rodoviários e assistência às vítimas, além dos custos do SUS com o tratamento direto a pacientes de alcoolismo. Segundo o governo federal, faltam dados mais precisos sobre casos que chegam às áreas de cardiologia e neurologia nos hospitais públicos”. [2]

Hercules Liberal

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Perdoe a pressa


Há 47 anos, Iuri Gagarin subiu ao cosmo. Surpreendente fato que inaugurou a chamada era espacial. Um espectro de futuro a rondar a Terra que, na visão do herói cosmonauta, era azul, a cor da felicidade. Visto de longe, nosso planeta irradiava uma imagem de um futuro, cada vez mais perto. Avassaladoras conquistas da humanidade, a exibir sem peias os instrumentos da redenção iminente. Prenúncios da liberdade prometida pelas ideologias do fim do século anterior. A ação do próprio homem a resultar em sucessivos avanços da ciência. Os instrumentos de condução ao paraíso. Ingênua e vã expectativa de que, agora, a tecnologia começaria a substituir parte do trabalho humano. Em quase tudo, a promessa de mais tempo ao homem. Tempo para a vida, para produzir felicidade.

Perdeu-se na poeira a imagem do Sinal Fechado com que Paulinho Viola retratou a vida andada “a cem”, nos anos setenta, para pegar um “lugar no futuro”. Como achar, na barafunda do trânsito, ou na vida de tantos, dois dedos de prosa perdidos numa parada do sinal, circunstância dramática narrada pelo poeta da Portela. Inda mais com películas contra o sol a isolar o homem do seu habitat natural de convivência com seu semelhante, principalmente quando se encontra ao volante.

Não é certo atribuirmos culpa pela clausura que nos impomos ao temor do menino da flanelinha, ou do vendedor de dropes, nem do distribuidor de impressos, todos os que alimentam nossa “neura” do assalto iminente. É uma fórmula oportunística que nos esconde, com razoável conforto, do preconceito contra os menos aquinhoados da vida moderna. Os apartados da sociedade, herdeiros da selvagem exploração humana.
O que tira das pessoas o direito à comunicação, à conivência solidária é a própria malha tecida, agora “a mil”, pelos atalhos da vida moderna. É esse o nosso lugar no futuro?

O que há de novo na cultura do mundo?. O que se produz diferentemente daquilo que demanda o mundo do mercado. Que criatividade há além da mania da auto-ajuda que caracteriza a “moderna” sociedade do eu sozinho? Que desfrutamos dos avanços da ciência a exceção do que setornou mais-valia? A lei do mais forte. A ampliação do fosso social. Que conjuntura resultou da globalização dos meios de produção e do mercado mundial? Globalização sob o controle do império econômico e maximizado pela ausência de concorrência ideológica no mundo, que se seguiu à queda do muro de Berlin.

Há uma busca frenética desde os anos setenta, ontem a cem, hoje a mil, e a inevitável procura por um espaço na perversa concorrência que a cultura do mercado de hoje impõe ao mundo. Passa-nos a sensação de que o tempo é que está passando muito rapidamente. Talvez a máquina do tempo tenha recebido uma aceleração diabólica, subliminar, para deixar espaço exíguo aos que possam ousar construir algo diferente, algum bezerro de ouro que possa confrontar o deus-capital, o deus-mercado.


O sinal... vai abrir... A todo tempo, nova partida para a perversa corrida em busca da riqueza que, cada vez mais, produz mais pobreza e menos tempo à felicidade.
Hercules Liberal

sábado, 17 de maio de 2008

O pastoril "Estrela de Belém"



Recebi meu décimo terceiro salário, desta vez sem o habitual acúmulo de dívidas a saldar. Corri ao “Mercado São José”, no Recife, em cujas ruas fronteiriças antigamente minha mãe, a me levar, criança, pela mão, costumava garimpar produtos mais baratos, com a mesma qualidade, e muitas vezes até melhores, que os vendidos na Rua Nova ou na Imperatriz. Não mudou nada nesse aspecto.

Assim, comprei o sonhado cortinado de filó. Não um cortinado qualquer. Um que permitisse meus movimentos vira-e-mexe de dormir, a deixar longe os malditos pernilongos cujas picadas penetravam minha alma. Já nem me incomodavam mais os renitentes decibéis dos seus cânticos torturantes que mais pareciam os ruídos das brocas de dentistas, que me davam pavor. Acostumei-me a eles. Ou eles a mim.

Aproveitei para saborear uma daquelas exuberantes tapiocas com coco ralado. Caprichadas por uma cabocla cheirando a alecrim. Dizia-se que ela ofertava ao cristão de quem gostava o mesmo sabor benevolente do seu beiju. Criança, eu não entendia muito a comparação. Apenas suspeitava. De qualquer modo, tratava-se de uma especiaria popular que rivalizava apenas com o peixinho agulha frito que se encontrava em cada esquina das seculares ruas do bairro de São José. Cuido, agora, de não babar o teclado do computador.

Naquela noite de dezembro, ao voltar do pastoril no auditório da “Rádio Clube”, onde eu já torcia pelo cordão encarnado, encarei a tarefa de dormir. Não sem antes comer um bom pedaço assado daquela carne importada do Sertão. O suor já a me escorrer pelo pescoço, quando resolvi abrir a janela esperando receber algum pedaço de brisa desviado do seu habitual caminho, vez subindo vez descendo a Rua da Cadeia, em Olinda, onde eu morava. Em vão.

Entretanto, nas horas de desespero, eu costumava buscar ajuda nas máximas do meu avô. Lembrei-me da sua tese de que não entraria vento na casa se ele não encontrasse uma outra porta, ou janela, para sair. Um santo remédio, com a ajuda do filó, claro.

Dormi toda a noite. Um cheiro de alecrim no ar. Ao longe, uma melodia íntima da criançada do meu tempo, como um coro de anjos: “Viemos para adorar...”
Hercules Liberal