sábado, 17 de maio de 2008

O pastoril "Estrela de Belém"



Recebi meu décimo terceiro salário, desta vez sem o habitual acúmulo de dívidas a saldar. Corri ao “Mercado São José”, no Recife, em cujas ruas fronteiriças antigamente minha mãe, a me levar, criança, pela mão, costumava garimpar produtos mais baratos, com a mesma qualidade, e muitas vezes até melhores, que os vendidos na Rua Nova ou na Imperatriz. Não mudou nada nesse aspecto.

Assim, comprei o sonhado cortinado de filó. Não um cortinado qualquer. Um que permitisse meus movimentos vira-e-mexe de dormir, a deixar longe os malditos pernilongos cujas picadas penetravam minha alma. Já nem me incomodavam mais os renitentes decibéis dos seus cânticos torturantes que mais pareciam os ruídos das brocas de dentistas, que me davam pavor. Acostumei-me a eles. Ou eles a mim.

Aproveitei para saborear uma daquelas exuberantes tapiocas com coco ralado. Caprichadas por uma cabocla cheirando a alecrim. Dizia-se que ela ofertava ao cristão de quem gostava o mesmo sabor benevolente do seu beiju. Criança, eu não entendia muito a comparação. Apenas suspeitava. De qualquer modo, tratava-se de uma especiaria popular que rivalizava apenas com o peixinho agulha frito que se encontrava em cada esquina das seculares ruas do bairro de São José. Cuido, agora, de não babar o teclado do computador.

Naquela noite de dezembro, ao voltar do pastoril no auditório da “Rádio Clube”, onde eu já torcia pelo cordão encarnado, encarei a tarefa de dormir. Não sem antes comer um bom pedaço assado daquela carne importada do Sertão. O suor já a me escorrer pelo pescoço, quando resolvi abrir a janela esperando receber algum pedaço de brisa desviado do seu habitual caminho, vez subindo vez descendo a Rua da Cadeia, em Olinda, onde eu morava. Em vão.

Entretanto, nas horas de desespero, eu costumava buscar ajuda nas máximas do meu avô. Lembrei-me da sua tese de que não entraria vento na casa se ele não encontrasse uma outra porta, ou janela, para sair. Um santo remédio, com a ajuda do filó, claro.

Dormi toda a noite. Um cheiro de alecrim no ar. Ao longe, uma melodia íntima da criançada do meu tempo, como um coro de anjos: “Viemos para adorar...”
Hercules Liberal

3 comentários:

Leila J disse...
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João Neto disse...

O paraíso de cores, cheiros e sentidos mil vem à tona até para quem dele nunca experimentou.Maravilhoso texto.

Isa disse...

Habituada ao teu estilo conciso, prático, sempre político ou essencialmente cultural, surpreendi-me com esta crônica leve, sentimental, diria doce reminiscência,com tal poder descritivo que visualizei tudo: o menino curioso de mãos dadas com a mãe,o cortinado tão presente em minha infância,a tapioquinha com coco do meu Pará...
Vai em frente nesse estilo, meu querido, faz bem recordar, e és um cronista dos meus!